terça-feira, dezembro 07, 2004

"Mas Matilde acabara por pesar também muito nessa decisão, ou nessa não decisão, e isso era a parte menos nobre das coisas. Perante a sua própria consciência, Luís Bernardo reconhecia friamente que S. Tomé lhe dava a possibilidade de fugir dignamente de Matilde. Sim, porque ele tinha querido fugir dela e não tinha outra forma de o fazer decentemente sem ser aquela. Como todos os sedutores por ocupação, o que o atraía era o jogo da aproximação, a irresistível tentação do objecto impossível, aquele roçar de todos os perigos, aquele arrepio do escândalo e do desejo conjugados, o triunfo final da sedução, os despojos da conquista a seus pés - as roupas espalhadas pelo chão, uma mulher nua, casada, de outro homem, entregue nos seus braços, gemendo de prazer e de terror na descoberta dos limites inexplorados da sua própria sexualidade. Mas depois disso, depois de deixar naquela noite o quarto de Matilde e o hotel na manhã seguinte, restara-lhe, como sempre, apenas um orgulho de caçador satisfeito e um desejo imperioso de se afastar para longe, tal qual um salteador que se quer afastar rapidamente da casa assaltada, para não ser desmascarado e denunciado. Na noite seguinte ele voltara ainda ao Hotel Bragança, para encontrar-se outra vez com Matilde. Tinham usado as mesmas cautelas, do mesmo estratagema, tinham-se abraçado com a mesma paixão da véspera, Matilde tinha-se-lhe entregue ainda mais intensa e livremente, despida de parte dos seus terrores iniciais, e ele tinha-a amado e demorado nela horas a fio, sabiamente, sem pressa, desfrutando por inteiro daquela noite. Mas, no seu íntimo, Luís Bernardo pressentia já que aquela era, provavelmente, a última noite."
Miguel Sousa Tavares, no Equador