quinta-feira, dezembro 30, 2004

"Quando ficaram a sós, permaneceram em silêncio, saboreando a ausência do elemento sobrante e não sabendo bem como começar a aproveitar essa tão esperada intimidade a dois." Miguel Sousa Tavares, no Equador

terça-feira, dezembro 07, 2004

"Mas Matilde acabara por pesar também muito nessa decisão, ou nessa não decisão, e isso era a parte menos nobre das coisas. Perante a sua própria consciência, Luís Bernardo reconhecia friamente que S. Tomé lhe dava a possibilidade de fugir dignamente de Matilde. Sim, porque ele tinha querido fugir dela e não tinha outra forma de o fazer decentemente sem ser aquela. Como todos os sedutores por ocupação, o que o atraía era o jogo da aproximação, a irresistível tentação do objecto impossível, aquele roçar de todos os perigos, aquele arrepio do escândalo e do desejo conjugados, o triunfo final da sedução, os despojos da conquista a seus pés - as roupas espalhadas pelo chão, uma mulher nua, casada, de outro homem, entregue nos seus braços, gemendo de prazer e de terror na descoberta dos limites inexplorados da sua própria sexualidade. Mas depois disso, depois de deixar naquela noite o quarto de Matilde e o hotel na manhã seguinte, restara-lhe, como sempre, apenas um orgulho de caçador satisfeito e um desejo imperioso de se afastar para longe, tal qual um salteador que se quer afastar rapidamente da casa assaltada, para não ser desmascarado e denunciado. Na noite seguinte ele voltara ainda ao Hotel Bragança, para encontrar-se outra vez com Matilde. Tinham usado as mesmas cautelas, do mesmo estratagema, tinham-se abraçado com a mesma paixão da véspera, Matilde tinha-se-lhe entregue ainda mais intensa e livremente, despida de parte dos seus terrores iniciais, e ele tinha-a amado e demorado nela horas a fio, sabiamente, sem pressa, desfrutando por inteiro daquela noite. Mas, no seu íntimo, Luís Bernardo pressentia já que aquela era, provavelmente, a última noite."
Miguel Sousa Tavares, no Equador

domingo, dezembro 05, 2004

"Pela décima vez, Matilde olhou para o relógio: eram dez e cinco e, para lá da porta do quarto, nem um som se ouvia no terceiro andar do corredor do Hotel Bragança.
«Será possível que ele não venha?» - a simples pergunta, a dúvida, provocava-lhe um arrepio de horror e de humilhação. E, todavia, ela própria não saberia dizer se preferiria que Luís Bernardo aparecesse ou não. Se ele não viesse, ela poderia sair dali incólume, toda a sua vida a salvo, com a tranquilidade de um futuro conhecido pela frente. Tinha os filhos, tinha o marido, tinha a sua vida ligeira e agradável na quinta de Vila Franca, as coisas postas em ordem, os rituais de todos os dias, sem angústias, sem segredos inconfessáveis, sem medo, sem terror, sem aquele sufoco que agora lhe devorava o peito. Se ele não viesse, tudo não teria passado de um devaneio de uma noite de Verão, de um breve momento em que perdera a lucidez num beijo roubado na escada de um hotel. Mas nada mais: não haveria este quarto de hotel, esta traição planeada, este encontro de sombras, trancada como se se escondesse de si própria e do mundo que escutava para além da janela. Não teria de sofrer esse pesadelo que já adivinhava, de ter uma cara para o dia e outra para a noite, uma cara para os outros, todos os outros, e outra para o fundo de si mesma. De manhã sairia dali a sorrir para o dia, intacta, fiel, igual a si mesma. Ao fundo de si mesma.
Mas se ele não viesse... Se ele não viesse, ela ficaria ali deitada a noite toda, como se tivesse sido violada e depois abandonada, uma peça de roupa usada e deitada fora, um acontecimento furtuito, um equívoco, um mal-entendido. Sentir-se-ia traidora atraiçoada, repudiada pelo próprio objecto da sua traição. Na manhã seguinte, ele deixaria provavelmente um bilhete na recepção do hotel - a desculpar-se com qualquer acontecimento imprevisto de última hora ou, pior ainda, a dizer que tinha chegado à conclusão que o melhor para ambos era ficar por ali. Sim, ela sairia para a rua de cabeça levantada: afinal, nada se teria passado. E, todavia, como tudo se teria passado! Ela ter-se-ia exposto e ele teria fugido, ela ter-se-ia entregue e ele tê-la-ia recusado. À noite, em casa, olharia para o seu marido com um sentimento de profunda vergonha e humilhação: «Nem sequer posso dizer para mim que te atraiçoei. Foi pior do que isso: estava preparada para te atraiçoar e fui rejeitada. Enganei-te, na mesma, sendo enganada.» E enfrentaria a sua delicadeza de sempre, os seus gestos de civilizada paixão, o seu ritual de cavalheiro na cama, com uma indiscritível sensação de sujidade interior."
Miguel Sousa Tavares, no Equador